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Quando o Sofrimento é Silenciado: uma reflexão sobre saúde mental, sociedade e subjetividade

27 de junho de 2024 | israelrienzopsicologo.com.br

Vivemos em uma sociedade em constante transformação. Compreender o sofrimento psíquico sem levar em conta o momento histórico e o contexto cultural em que estamos inseridos é ignorar parte essencial da experiência humana. As formas de nos relacionarmos mudam com o tempo — o conceito de família, por exemplo, já não é o mesmo de décadas atrás. Relações antes pautadas na coletividade passam a ser individualizadas e até mesmo tratadas como mercadorias, dentro de uma lógica de consumo.

Se em outro tempo o prazer era algo a ser reprimido, hoje ele é buscado de maneira urgente, quase como uma obrigação. O mal-estar psíquico, por sua vez, é frequentemente visto como responsabilidade única do sujeito — como se ele devesse dar conta de tudo, o tempo todo, sozinho.
Quando reduzimos o sofrimento a algo puramente individual, perdemos de vista a complexidade de viver em sociedade. Passamos a acreditar que nossas dores, nossos conflitos e até nossos fracassos são apenas falhas pessoais — como se não tivessem nenhuma relação com a cultura, o tempo ou o modo de vida que nos atravessa. A identidade, antes construída a partir de aspectos coletivos como classe social, etnia e religião, passa a ser vista como resultado de escolhas individuais.

Essa mudança pode parecer libertadora à primeira vista. Mas, como aponta o sociólogo Ulrich Beck, esse processo de individualização também nos isola. Ao mesmo tempo em que somos “livres” para escolher quem queremos ser, perdemos os referenciais que nos conectavam ao mundo. E, sem esses referenciais, muitos acabam se sentindo perdidos dentro de si mesmos.

É importante lembrar que individualização não é o mesmo que individuação. Enquanto a individuação é o processo de construção da subjetividade, da nossa singularidade e autonomia, a individualização — tal como ocorre hoje — é uma exigência social: somos empurrados à ideia de que precisamos nos reinventar o tempo todo, sozinhos, para dar conta de tudo.

Na lógica atual, o tempo nunca é suficiente. Vivemos com a sensação constante de atraso, tentando acompanhar um ritmo de produtividade cada vez mais acelerado. É a chamada sociedade do desempenho, conceito que o filósofo Byung-Chul Han descreve como um tempo em que todos somos empresários de nós mesmos — sempre buscando render mais, fazer mais, ser mais.

E quando esse ritmo se torna insustentável, muitos adoecem. Mas mesmo o adoecimento é visto como falha individual. Quem não consegue acompanhar a maratona é responsabilizado. A depressão, nesse contexto, deixa de ser entendida como expressão de um sofrimento profundo e passa a ser um “obstáculo” para a produtividade.

Ao invés de se escutar esse sofrimento, muitas vezes o que se busca são “soluções rápidas”: comprimidos que prometem silenciar o mal-estar e devolver o sujeito à vida ativa. A vida se torna medicalizada. A tristeza precisa passar rápido, o cansaço precisa ser superado logo, e o sofrimento… não pode existir por muito tempo.

O cuidado com a saúde mental corre o risco de ser substituído por uma lógica de “otimização emocional” — em que o foco deixa de ser a elaboração do sofrimento, e passa a ser a performance: como voltar a funcionar o mais rápido possível.

Em uma cultura que valoriza a performance e o sucesso individual acima de tudo, o sofrimento passa a ser algo vergonhoso. Emoções disruptivas são silenciadas. Ser feliz deixa de ser uma aspiração legítima para se tornar uma obrigação. A felicidade, agora, tem um roteiro pronto — quase como um check-list que deve ser seguido para provar que a vida está “no caminho certo”.

Mesmo sentimentos como ansiedade podem ser bem-vistos — desde que levem à produtividade. Mas se paralisam, se interrompem o desempenho, tornam-se inaceitáveis. Tudo é medido pela régua da eficiência. Nessa lógica, até a saúde deixa de ser um meio e se transforma em um fim: precisamos estar saudáveis não para viver melhor, mas para produzir mais.

Nesse cenário, o próprio sofrimento perde espaço para existir. É transformado em disfunção, algo a ser corrigido, ajustado, silenciado. A subjetividade é capturada por ideais inatingíveis — como se fosse possível comprar bem-estar, adquirir autoestima, controlar as emoções como se estivéssemos regulando uma máquina.

E quando o sujeito não corresponde a esses ideais, sente-se falho. Sem referências coletivas que lhe ofereçam sentido, perde-se de si mesmo. Como lembra Renata Salecl, vivemos uma época em que o indivíduo tem, supostamente, liberdade total para escolher quem deseja ser — mas, paradoxalmente, essa liberdade o aprisiona, pois falta-lhe algo essencial: um eixo simbólico, uma escuta, um espaço legítimo para existir como é.

Diante dessa realidade, torna-se urgente resgatar o valor da escuta. Escutar o sofrimento não como algo que precisa ser imediatamente eliminado, mas como um sinal de algo que precisa ser elaborado. Em vez de enquadrar o sujeito em uma norma de funcionamento ideal, é preciso abrir espaço para que ele fale — e seja escutado — a partir de sua própria história, de seus desejos, de seus conflitos.

Isso significa reconhecer que os adoecimentos não são apenas expressões individuais, mas também efeitos de um contexto social, histórico e cultural. Se a sociedade muda, mudam também as formas de sofrer. Da histeria no tempo de Freud à depressão e ansiedade dos dias de hoje, há algo no laço social que se transforma — e que, muitas vezes, adoece.

É preciso olhar para o sujeito para além da lógica da produtividade. Isso não significa ignorar as condições sociais, muito pelo contrário. É no entrelaçamento entre o individual e o coletivo que podem surgir formas mais humanas de cuidado. Ambientes como a universidade, por exemplo, têm o potencial de ser espaços promotores de saúde, desde que acolham a escuta, a reflexão e o tempo necessário para que o sofrimento possa ter voz.

A pesquisa científica também tem papel fundamental nesse processo. Ao investigar as causas do sofrimento psíquico e os contextos em que ele emerge, podemos construir políticas, práticas e ambientes mais sensíveis às singularidades — e menos hostis à existência.

Promover saúde mental é mais do que tratar sintomas: é possibilitar experiências de reconhecimento, de escuta e de reconstrução de sentido.

Referências

BECK, U. Individualização, institucionalização e padronização das condições de vida e dos modelos biográficos. In: BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010. Cap. 5, p. 189-202.

BEZERRA JR., B. A psiquiatria e a gestão tecnológica do bem-estar. In: FREIRE FILHO, J. (Org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010. p. 117-134.

SALECL, R. Sobre a felicidade: ansiedade e consumo na era do hipercapitalismo. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2012. p. 7-45.

SILVA JR., N. O mal-estar no sofrimento e a necessidade de sua revisão pela psicanálise. In: SAFATLE, V.; SILVA JR., N.; DUNKER, C. (Orgs.). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. Cap. 1, p. 35-58.

VERAS, L.; SANTOS, A. O estudante de medicina e seu percurso acadêmico: uma análise de postagens sobre sofrimentos. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. 130, p. 720-732, jul./set. 2021.

ZORZANELLI, R. et al. Um panorama sobre as variações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 6, p. 1861-1868, 2014.

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