29 de abril de 2025 | israelrienzopsicologo.com.br
Como o capitalismo contemporâneo coloniza nossas experiências mais íntimas — e por que ainda é possível (e necessário) sonhar com outros mundos.
No meio de uma sessão, uma paciente diz, com um misto de cansaço e culpa: “Eu não estou rendendo nem no trabalho e nem na vida”. Essa sua angústia não parece nascer apenas de um problema isolado, mas de algo mais amplo. É como se sua existência inteira estivesse sendo avaliada por métricas invisíveis aos olhos, por expectativas de produtividade e promessas de felicidade que ela sequer escolheu seguir.
O sofrimento psíquico, nos tempos atuais, é recodificado por discursos que falam de desempenho, resiliência e positividade. Emoções deixam de ser vividas para serem controladas. O mal-estar deixa de convocar escuta e passa a ser medicalizado ou transformado em sinal de fracasso pessoal.
Neste cenário, o inconsciente – espaço de desordem, desejo e invenção – é posto sob vigilância. As tecnologias digitais, que são atravessadas por lógicas neoliberais, não apenas monitoram comportamentos, mas participam da própria produção subjetiva. Assim, estamos diante de uma nova forma de colonização: uma colonização que penetra a dimensão mais íntima da experiência e reconfigura o significado de sofrer, desejar e sonhar.
Michael O’Loughlin, em seu artigo “Academic freedom: Challenges to cultivating a revolutionary unconscious in a neoliberal world”, denuncia a forma como o inconsciente é cada vez mais restringido por lógicas neoliberais, que atravessam não só o contexto universitário, mas também a clínica e a vida social. Em vez de ser um lugar de liberdade psíquica, o inconsciente passa a torna-se alvo de domesticação e disciplinamento.
Nesse contexto, a psicanálise, se capturada pela lógica neoliberal, sofre deslocamentos perigosos. Em vez de uma escuta atenta ao que foge à razão, surge uma demanda pela eficiência terapêutica, resultados mensuráveis e intervenções normativas. O sintoma, antes tratado como um enigma a ser revelado, passa a ser compreendido como um obstáculo ao funcionamento pleno do sujeito. Há um apagamento da capacidade de reconhecer o outro em sua singularidade, como alguém que nos confronta com o diferente, com o estranho, com o que não pode ser reduzido ao mesmo. A lógica neoliberal, ao exigir adaptação e autogestão constante, empobrece uma abertura ao outro, produzindo uma subjetividade cada vez mais homogênea, adaptada e produtiva.
Esse processo não ocorre apenas nas instituições, mas também na vida cotidiana. Entre os mantras da positividade, da busca incessante por uma autossuperação constante e o empobrecimento afetivo promovido pelas redes sociais, surge uma atmosfera em que a dor precisa ser rapidamente anestesiada ou transformada esteticamente em conteúdo. O ato de sustentar o outro em sua singularidade por meio da escuta torna-se cada vez mais raro.
A psicanálise, nesse cenário, é convocada a resistir. Escutar o inconsciente é, hoje, um gesto político. Implica resistir a maré da padronização emocional e afirmar que há desejo onde o sistema busca ver apenas adaptação, afirmar que há conflito onde o discurso dominante exige harmonia.
O que ainda poderia escapar em um contexto onde o neoliberalismo digital parece colonizar até mesmo o que sentimos? O texto de Frieda Ekotto, ao comentar a obra Brutalism de Achille Mbembe, nos convida a olhar para as ruínas não como um ponto final, mas como o início de outra coisa. Mbembe nos fala de um mundo exausto, onde a brutalidade do capitalismo se faz sentir não só nas estruturas sociais, mas também nos afetos: corpos cansados, laços esgarçados, futuros encurtados.
Nesse cenário de esgotamento, a sensação predominante é de que não há alternativas. Porém, Mbembe insiste em sonhar, mas não um sonho como forma de fantasiar escapismos, e sim de realizar um gesto de resistência. Ao sonhar, imagina-se o impossível, se dá forma ao que ainda não existe e se aposta na possibilidade de um futuro mesmo quando tudo ao redor parece ter desabado.
É nesse ponto que a psicanálise encontra ressonância: a clínica também se dá entre ruínas. Ruínas de histórias, de identidades e de promessas não cumpridas. É justamente aí, em um território esfarelado que o desejo pode emergir. Os sonhos, mesmo os mais perturbadores, são testemunhos de que algo ainda pulsa e resiste à lógica do controle e da homogeneização.
Sonhar aqui, é sustentar o desejo mesmo sob o cerco do real. É resistir ao adormecimento coletivo. No lugar de uma positividade esvaziada, os sonhos nos devolvem a opacidade da vida, sua indisciplina e seu desvio. São uma lembrança de que não somos inteiramente colonizáveis e que, mesmo entre as frestas de um mundo exausto, ainda há espaço para imaginar outros modos de existência.
A forma como sentimos dor, oferecemos cuidado e nos vinculamos ao outro está sendo profundamente reorganizada pelas tecnologias digitais. Dispositivos que antes pareciam apenas facilitar a vida, agora, se tornam os principais mediadores da experiência emocional. Aplicativos que oferecem “escutas rápidas”, algoritmos que propõem “soluções” para o sofrimento e inteligências artificiais que simulam vínculos parecem indicar uma crescente automatização do sensível.
Nesse movimento, há o risco de substituirmos a presença viva pela performance de presença. O cuidado, que antes estava enraizado na escuta, na demora e na incerteza, pode ceder lugar a respostas programadas e gestos estéticos que simulam empatia, mas evitam o encontro real. Por sua vez, a dor tende a ser enquadrada em categorias diagnósticas imediatas ou transformada em relato de superação para consumo nas redes.
No entanto, é justamente aqui que se abrem fissuras importantes, pois a dor insiste e há experiências que escapam ao filtro do algoritmo. Então, pensar em uma reinvenção do cuidado que passe não pela eficiência, mas pela sensibilidade, talvez seja possível, em uma ética do encontro que reconheça a opacidade do outro, sua irredutibilidade à função ou ao perfil.
Na clínica, esse gesto se torna concreto ao escutar sem tentar resolver, ao sustentar silêncios, ao acolher o que não se encaixa. A escuta psicanalítica resiste à lógica das soluções prontas. Ela não responde de imediato e não organiza o mundo do outro em categorias previsíveis, mas acompanha, perturba, aposta que há sentido mesmo no que parece sem forma. Cuidar, nesse contexto, é recusar a pressa. É insistir na presença como algo que não pode ser automatizado, pois exige corpo, tempo, afeto e desejo.
Vivemos tempos em que o inconsciente é colonizado por lógicas de produtividade, os afetos são padronizados por algoritmos, e o cuidado é cada vez mais capturado pela linguagem da eficiência. O sofrimento psíquico, longe de ser acolhido em sua singularidade, é muitas vezes tratado como disfunção a ser corrigida rapidamente, silenciosamente e higienicamente.
Nesse cenário, a escuta clínica torna-se um ato de resistência. Escutar não é apenas ouvir, é sustentar a presença do outro em sua singularidade, é acolher o que não se resolve, é dar lugar ao que insiste. É permitir que o sujeito fale, e que essa fala não seja reduzida a dado, sintoma ou desvio a ser normalizado.
A psicanálise nos lembra que há potência nas ruínas, que os sonhos carregam verdades incômodas, e que o desejo sobrevive mesmo sob os escombros do tempo. Diante de um mundo que busca automatizar até os afetos, cultivar a escuta e sustentar o sonho é um gesto político. Aqui, sonhar não é fugir do real, mas sim reinventá-lo. É afirmar que, mesmo em tempos de brutalidade e esvaziamento, ainda podemos construir novos mundos. E que cada encontro clínico, em sua singularidade irrepetível, é uma semente de futuro lançada no presente.
REFERÊNCIAS
Academic freedom: Challenges to cultivating a revolutionary unconscious in a neoliberal world Michael O’Loughlin Disponivel em https://link.springer.com/article/10.1057/s41282-024-00517-6
A Dream of Another World Frieda Ekotto Review of Achille Mbembe’s Brutalism, trans. Steve Corcoran (Duke University Press, 2024) https://manifold.umn.edu/read/cc-frame-011-rev-04/section/cf373238-1ce5-4497-8cee-8aee6fb66caa
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