29 de abril de 2024 | israelrienzopsicologo.com.br
O sofrimento é uma experiência complexa, abordada por diferentes campos do conhecimento sob várias perspectivas — seja em termos sociais, econômicos, orgânicos, culturais, raciais, morais ou psíquicos. Na Psicanálise, compreendemos essa experiência por meio de conceitos como angústia, mal-estar, desamparo, o “estranho” ou a sensação de infamiliaridade, todas as quais refletem uma intrínseca relação com o psiquismo humano, marcado pela dicotomia prazer/desprazer.
Esse sofrimento, em muitas de suas manifestações, pode ter origem no corpo, nas relações com o mundo externo ou na dinâmica com outros sujeitos. O contexto social e cultural no qual estamos inseridos também influencia a forma como o sofrimento se expressa e é vivenciado, muitas vezes levando à sua invisibilização ou desvalorização.
Os discursos de uma sociedade, em um dado momento histórico, não apenas refletem, mas também constroem realidades. Eles moldam e sustentam a ordem social vigente, determinando posições, valores e lugares para cada indivíduo. Nesse sentido, as dores e os amores que marcam a vida humana se articulam com as dificuldades da sobrevivência, incluindo a exclusão de recursos materiais e culturais.
A Biopolítica, como discutida por Foucault (1976), revela as formas sutis de poder que se exercem sobre os corpos e populações. Este poder se manifesta no controle de processos biológicos e na gestão da vida e da saúde, frequentemente sublinhando a desigualdade entre diferentes grupos sociais. Por outro lado, a Necropolítica, proposta por Mbembe (2018), explora o direito de matar, que se torna evidente na marginalização de populações excluídas, aquelas que não são “aproveitadas” pelo sistema capitalista. Através dessa perspectiva, podemos entender como as relações de poder, o controle e a exploração social contribuem para a perpetuação do sofrimento — seja por meio de angústia, vergonha, culpa ou humilhação.
Em muitos casos, sujeitos que ocupam posições marginalizadas — seja por fatores econômicos, raciais, culturais, religiosos ou de gênero — têm seu sofrimento silenciado. Esse silenciamento não é acidental; ele faz parte de um jogo de poder, no qual a narrativa do sofrimento é moldada para preservar um status quo que ignora ou deslegitima a experiência desses sujeitos. O discurso hegemônico, em suas diversas formas, invisibiliza aqueles que sofrem, atribuindo-lhes um lugar de inferioridade, ao mesmo tempo em que patologiza e criminaliza sua condição social.
A sociedade contemporânea, marcada pelo processo de individualização, descrito por Ulrich Beck, torna os indivíduos responsáveis por suas próprias vidas e escolhas. Embora esse modelo proporcione uma sensação de liberdade e autonomia, ele também intensifica o sofrimento psíquico, gerando ansiedade, solidão e uma constante pressão para atingir padrões de sucesso frequentemente inatingíveis. Nesse cenário, o sofrimento se torna ainda mais isolado, individualizado e patologizado, à medida que o sujeito é levado a acreditar que é o único responsável por sua dor.
Esse fenômeno é evidente, por exemplo, nas relações de trabalho. Segundo Dejours (1992), muitos trabalhadores internalizam a lógica de dominação e se culpam pelo próprio sofrimento, tornando-se insensíveis tanto à sua dor quanto à dor do outro. Esse processo de naturalização e silenciamento do sofrimento também é perceptível no contexto do racismo estrutural, que continua a silenciar e marginalizar negros e negras na sociedade brasileira. A expressão “tornar-se negro”, cunhada por Neusa Souza, revela o apagamento histórico e social desses sujeitos, que são constantemente silenciados ou, quando não invisibilizados, expostos de maneira hiperssexualizada ou associada à violência e à criminalidade.
Nas relações raciais, o discurso dominante desloca o sujeito negro de sua história pessoal, cultural e política, enquanto concede ao branco o status de “ser humano universal”. No caso da mulher negra, essa narrativa se traduz em uma hiperssexualização de seu corpo, na permissividade de sua violação e na alienação de seu ideal de beleza — o qual é invariavelmente o da mulher branca. Esse processo de despotencialização e apagamento de negros e negras se dá tanto pela invisibilidade quanto pela superexposição, criando uma imagem distorcida e desumanizante.
Concluímos, então, que a compreensão do sofrimento, tanto pela Psicanálise quanto pela análise das estruturas de poder, revela como as desigualdades sociais e as injustiças são perpetuadas por meio da naturalização e silenciamento do sofrimento. Grupos marginalizados, especialmente aqueles mais vulneráveis, são frequentemente vítimas de uma opressão silenciosa que os exclui de uma narrativa legitimada socialmente. Reconhecer essas dinâmicas e trabalhar para desmantelá-las é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
A promoção de espaços coletivos de diálogo e acolhimento é fundamental para dar voz a aqueles que, historicamente, foram silenciados. Esses espaços podem fornecer o suporte necessário para que todos os indivíduos, independentemente de sua posição social, possam expressar seu sofrimento e suas experiências de maneira plena e digna. Somente assim, seremos capazes de avançar para uma sociedade que valorize a vida humana em todas as suas formas, promovendo a inclusão, a solidariedade e a justiça social.
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